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  • Quinta-feira, 27 de janeiro de 2005


    O desaniversário de Jacob

    Um coelho branco, mas não um mero coelho branco. A história a ser contada é sobre Jacob. Um coelho devoto hindu. Não me pergunte se era xiita ou outra coisa, era apenas hindu.

    Todo dia ao levantar-se, antes ainda da primeira refeição, se alongava, respirava profundamente utilizando tanto o diafragma de coelho hindu (ele o tinha mesmo!), quanto seus pulmões. Quando seu cérebro já estava hiper ventilado começava com a respiração circular. Da cultura milenar hindu se interessou por música, yoga e meditação. Bem, o Kama Sutra sabia de cor, afinal ele era um coelho, e a prática sempre leva a perfeição.

    Interessou-se tanto por música que inventou um tipo de aparelho ortodôntico para colocar seus incisivos “para dentro” da boca, pois atrapalhavam-no a tocar flauta. Jacob era um exímio coelho flautista e da casta mais alta. E como tocava bem sua flauta de osso!

    Comeu algumas folhas de uma verdura qualquer que encontrou em seu jardim, respirou novamente de maneira profunda, deu umas assopradas doces em sua flauta e saiu, não antes de dizer um Ohm bem longo e deveras solene.

    Hoje era seu desaniversário de número 364, o que significa que teria que fazer a viagem como peregrino a fim de encontrar seu guru.

    Também teria que se abster de sexo, o que para um coelho significa encrenca, mesmo para um coelho yogue.

    Enquanto corria pelos campos esforçava sua mente a lembrar dos seus outros 363 desaniversários passados, depois do último aniversário, e da última peregrinação, por conseqüência, fez algumas contas e notou que como mantinha uma média de 50 cópulas por dia, tinha tido 18.200 parceiras no último período desaniversárico... bem talvez algumas tenham se repetido, mas para inflar seu ego de coelho preferia pensar que foram 18.200 coelhas diferentes.

    Sim, tudo estava na mais perfeita ordem. Boa média de sexo, meditação, yoga e música! Seu guru iria ficar satisfeito e dar-lhe uma boa passagem e uma revelação profunda de aniversário.

    Zara vinha correndo também. Vinha na direção contrária de Jacob. Zara era uma raposa vermelha, e como Jacob, não era uma mera raposa, era uma raposa vermelha condecorada paquistanesa. Vinha trazendo um embrulho e uma mochila às costas.

    Zara era uma paquistanesa como manda o figurino. Estava com o rosto à mostra, mas como não havia ninguém por perto, ninguém iria vê-la, logo sua falta não seria notada.

    Zara tinha 3 pequenos guris e era viúva. Hasin, seu esposo, fora morto por um escorpião israelense, assim acumulara as funções de mãe, pai e militante política.

    Jacob continuava a correr rumo à casa do seu guru. Chegou nos 15 minutos finais do seu último desaniversário daquele ano. O guru Rama o esperava.

    Zara pensava em Hasin, no seu belo rabo, nos seus cabelos de fogo e no pequeno escorpião que sem derramar mais do que uma gota de sangue matou Hasin com requintes de crueldade e agonia. Pensava em quantos escorpiões Hasin já havia explodido, mas eram apenas escorpiões, animais sujos da areia e do pó. Não era certo uma raposa, mãe de família, julgar seu marido por ter explodido apenas algumas centenas de escorpiões israelenses.

    Pensava enquanto andava.

    Jacob estava indignado. Seu guru Rama, como de praxe, a cada último desaniversário do ciclo lhe revelava parte do seu passado.

    Ora, ora! Nunca tinha notado que Jacob não era um nome hindu. Como nunca notara? Era mais do que óbvio, mas judeu? Como trocar o lindo coelhofante azul Indra, e o coelhão de 6 braços shiva por um velho abutre barbudo chamado javé, iavé, Jeová... não sabia bem pronunciar o nome do velho abutre, recém apresentado e que agora deveria receber oferendas e louvor, ao invés do coelhofante azul.

    Mas como ainda no fundo de sua alma coelhica acreditava em reencarnação (tinha que pensar baixo, pois nas leis do velho abutre Iavé, reencarnação era uma blasfêmia, pois para eles, e para Jacob agora obrigado por Rama, que fique claro! teria que ser judeu por um ciclo desaniversárico)... bem como ainda acreditava em reencarnação, e Rama nunca dava informações para mais de um ano, logo pensou que isto só poderia ter sido em outra vida. Teria que esperar então, mais 364 desaniversários para seu guru lhe revelar algo mais.

    Zara pensava nas outras esposas de Hasin. Por onde andariam desde a morte do marido? O harém tinha se desfeito, e de qualquer forma, Zara nunca reconheceu as outras como esposas, e por baixo de suas raposoburcas seria impossível reconhecer seus focinhos. Que importava? Ela sempre tinha sido a raposa número um, as outras eram as outras, como diria a famosa expressão raposopopular, e ela - Zara - que tinha carregado em seu ventre as pequenas raposas, não as outras !

    Jacob como coelho, e ex-coelho hindu, não comia carne, nem minhocas, nem larvas, nem nada animal. Só alface e cenoura mesmo (eram seus pratos favoritos) mas qualquer verdura lhe apetecia o paladar. Mas a peregrinação tinha-o fatigado. Estava prestes a cair, falecer, e de que adiantaria abstenção de carne perante a morte? Nem para reencarnação serviria, pois teria que esperar por mais 364 desaniversários para a próxima revelação do guru Rama. Esperar, esperar... que raio de nome Jacob é esse? E como poderia ser hebreu, israelense e judeu? Esperar, esperar...

    A fome o remoía.

    De repente viu 3 pequenas raposinhas. Não agüentou. Saltou sobre elas e com seus incisivos cortantes (devido ao aparelho ortodôntico) , cortou suas jugulares, e as comeu.

    Pensou : foda-se. Já fui hebreu, logo acho que comia carne, menos animais impuros, mas...hummmmm...que gostoso!

    Zara caminhava pelos verdes prados de um oásis cheio de água doce (estava a encher seu cantil para hidratar seus pequenos filhotes) quando se lembrou do seu outro lado. Não o lado mãe, mas o lado pai, substituto de Hasin. O lado militante político. Repentinamente veio à memória sua mochila. Oh tinha esquecido junto aos seus filhotes.

    Jacob estava com sede. Não estava acostumado a tal cardápio salgado e sangrento, em outras palavras, carnívoro. Ao olhar ao redor das 3 carcaças devoradas viu uma pequena mala. Pensou: deve haver algo que possa matar a minha sede.

    Mas ao abri-la liberou-se o fogo-fátuo. Todas as preocupações de Zara agora eram obsoletas. Zara era uma raposa paquistanesa bomba, indo de encontro à toca dos coelhos hindus. Não chegou a completar sua missão. A mala explodiu!


    Quinta-feira, 20 de janeiro de 2005


    A loucura controlada

    Há sabedoria na loucura controlada, sussurrava Mi-Tshe-Ring.

    Era um daqueles dias de lascar. O sol fervia as nuvens e o céu chorava pelo intenso calor que o feria. Os últimos meses foram terríveis para o mundo. Calor, muito calor, sussurrava Mi-Tshe-Ring. Calor, muito calor...

    Meses a fio sem chuva, a temperatura beirava os quarenta e oito graus Celsius em Barcelona. Uma epidemia misteriosa havia se alastrado. Ainda não havia mortos, ou melhor, ainda não havia corpos espalhados pela Europa. Os corpos estavam andando por aí, pelas sombras, escondendo-se do Sol, mas não agiam mais como dantes.

    Via-se de tudo nas ruas. Bufões andavam e corriam tropeçando em seus próprios pés, ou em algum outro par desavisado que passassem próximos aos deles. Derrubavam toalhas úmidas dos varais (as pessoas agora tinham este hábito. Em todo lugar encontravam-se panos úmidos pendurados), e as colocavam em suas cinturas de bufões. Tiravam suas calças e roupas íntimas, por sob a toalha, e mostravam seus órgãos sexuais em meio a gargalhadas grotescas. Às vezes apenas sentavam-se em algum banco de praça e falavam e riam com algum amigo imaginário.

    Via-se também seres andróginos aos montes. Mi-Tshe-Ring observava e queixava-se do calor, da sacada de seu apartamento, em meio a toalhas úmidas e muito calor.

    Outro dia de lá viu pessoas aglomeradas para assistir um vizinho ser serrado ao meio. Tinham cometido um erro durante o processo e agora tinham dois jornaleiros de noventa centímetros cada. Na verdade perderam um pedacinho dele. Mi-Tshe-Ring achava que do jornaleiro original de um metro e oitenta e dois centímetros, tinha sobrado talvez um metro e setenta e cinco.

    Varreram as rebarbas do corpo bi-partido em meio ao sangue que vazava da caixa recém aberta. Mas lá iam eles, em meio a gritos histéricos, serrar outro vizinho, para tentar reproduzir o espetáculo de gerações passadas, realizado sob tendas de lona. Imaginava Mi-Tshe-Ring, hoje, sob uma lona, em meio a tal calor, qualquer criança ferveria...

    Quantas máscaras pela rua. Todos usavam alguma. Mi-Tshe-Ring não entendia o planeta. Sua namorada dizia que dos quarenta e poucos músculos acionados no ato de sorrir, na face, (quando se mostra os dentes), não tinha visto nem seis. Mi-Tshe-Ring era louco. Era completamente fora dos padrões do mundo atual, por isso mantinha-se só a completar os trabalhos finais dos I.As. que estavam aprendendo a tocar trompa. Eram um quarteto de trompas. Tocavam razoavelmente bem escalas melódicas e harmonias complexas, mas a paixão dos antigos homens não se encontrava neles. Mi-Tshe-Ring depois de sete anos de pesquisa não entendia porque não conseguiam tocar como ouvia em gravações passadas. A essa altura já deveriam estar interpretando fragmentos de Stravinsky, mas soava apenas um dó ré dó ré interminável, com harmônicos que lembravam o som de um videogame do século XX, algo como o som do acelerar dos carros do Enduro-Atari.

    Sua namorada ainda pretendia um dia ver os tais músculos da face a contrair e relaxar durante o tão aguardado riso de Mi-Tshe-Ring, que nunca vinha.

    Como Violeta fora feita à imagem e semelhança do seu criador, não conseguia sorrir também. Era tal qual Mi-Tshe-Ring. Não entendia piadas, não assoviava, não cantarolava no chuveiro holográfico, nem enquanto comia. (tanto o chuveiro, quanto às refeições eram holográficas, Foram aclopadas ao programa inicial dos I.As. com intuito de reproduzir as funções básicas do prazer. Comer e banhar-se).

    O mundo parecia um grande circo. As Sete Faces do Doutor Lao não descreveria tal espetáculo tão bem quanto o que se via em qualquer banco das muitas praças de Barcelona.

    Ao olhar de sua sacada para a Sagrada Família, ainda inacabada depois de quase um século, pensou : talvez hoje Gaudi seria um ser normal, tal como eu, perante tal desvairada manada de seres humano-oníricos. Se houvesse mais homens como ele, ou como eu, em suma normais, resolver-se-ia o problema da construção. Talvez até Gáudio não tivesse morrido atropelado, pois para que olhar para a loucura arquitetônica acima de sua cabeça, se havia tanta no solo entre as pessoas...teria visto o carro a se aproximar dele...não teria sido atropelado.

    Ao acessar o banco de dados dos costumes culturais do Século XX, se deparou com dados de religiões ocidentais diversas. Via que as religiões eram como um grande circo. Digo, o Rito, não o Mito, que fique claro, pensava ele. Pastores, padres, cléricos aglomeravam pessoas perante seus púlpitos e as instigavam a acreditar no impossível, no improvável. Em vez de serrar pessoas ao meio, juravam poder concertá-las, em nome de algum nome mitológico (cada uma tinha um a que recorrer). Todas aquelas pessoas com máscaras o incomodavam. Não entendia o porque deste costume atual de andar por aí com outro rosto, colocado sobre o original orgânico.

    Mas se ninguém mais agia como ser individual, para que a individualidade genética? Para que tamanha singularidade em rostos diferentes, etnias, culturas. Havia apenas os grupos. Os grandes grupos.

    Clãs de Bufões, clãs dos oníricos-homens, dos palhaços, dos andróginos. (As mulheres não se depilavam mais, e as que possuíam pelos faciais devido a alguma disfunção genética, tinham agora o péssimo hábito de cultivá-los, e até realçá-los com lápis e Rímel. Os homens não cortavam mais seus cabelos, nem suas unhas também, e andavam maquiados exageradamente).

    Lá do alto do seu apartamento, viu um homem com uma máscara de Cristo, outro com uma de Gandhi, e jurava até ter visto um Pablo Picasso! Percebeu que mesmo quando os homens ainda eram semilunáticos, até meados do início do Século XXI as máscaras já existiam. Grandes grupos de homens e mulheres vestiam suas máscaras imaginárias e perseguiam ideais mais imaginários ainda. Alguns, como Picasso até as tinham estudado profundamente, para retratar melhor a complexidade da loucura humana.

    Resolveu voltar ao interior de seu lar e tentar alguns novos progressos nos I.As trompistas. No meio do movimento de virar o corpo e voltar ao interior de sua casa, viu inda anões a saltitar e beliscar todos que passavam na rua. Pior! Davam cambalhotas!

    Achava que não havia mais deles no mundo... eles dão cambalhotas... que irritante!

    Violeta observava as reações do seu namorado e criador. Para ela, Mi-Tshe-Ring era um deus. Não só havia criado Violeta, mas a criou a sua imagem e semelhança. Mesmo assim Violeta não entendia porque só Mi-Tshe-Ring era sério, completamente fora dos padrões de normalidade. Nunca permitiu qualquer tentativa dos seus vizinhos a serrá-lo ao meio, nunca dava aquelas risadas de hiena dos bufões, seus cabelos eram curtos, e suas unhas bem aparadas...fora o fato que mais a perturbava. Ele nunca mostrava os dentes. Apenas sorria de maneira branda, quando resolvia um problema muito intrincado.

    De repente assoviou. Mi-Thse-Ring, de princípio não reparou. Achava que era algum trapezista tentando escalar o seu prédio a assoviar, na tentativa de ser notado.

    Aquela música não saia de sua cabeça. Que inferno!

    Resolveu ir ver quem era o “mentecapto assobiador” que tanto o importunava. Ao se defrontar com o que viu parou. Violeta assoviava. Mas como ? Não tinha ensinado, nem programado tal função. Aliás ele, o criador de Violeta, não sabia assoviar desde a mais tenra idade. Nunca soube.

    Voltou o pensamento para os seus I.As. trompistas. Notou que nunca haviam conseguido tal feito. Seus lábios sintéticos conseguiam a adaptação de embocadura para tocar três oitavas das quatro da tessitura de suas trompas. Mas nunca assoviaram, nem mesmo quando tinham a inteligência musical de uma criança.

    Neste momento percebeu, abriu os olhos da mente. O que falta nos I.As. é a loucura controlada. O homem nunca foi normal. Sempre foi louco, ousado, criativo. Sua loucura era controlada...sua loucura era controlada ! repetia. De lá saíram artistas, escritores, músicos, matemáticos, atletas, atores...todo o conhecimento humano é fruto da loucura controlada.

    Voltou ao seu computador a fim de estudar um pouco mais os costumes de antes. Viu que os homens, os líderes, perceberam que o poder sempre se concentrava nas mãos dos que conseguiam um modo de manipular a loucura alheia, controlando-a. Sem a loucura o homem ficaria louco? OH! Que belo paradoxo. Será que foi isso o que ocorreu à humanidade? Tentaram retirar a loucura do mundo e o mundo pirou de vez?

    Estendeu alguns panos úmidos ao redor de sua cadeira de trabalho e pensava... pensava... pensava, em meio ao calor. Depois de alguns instantes apenas repetia, mas que calor, que maldito calor! Que calor ...

    Fez uma pausa e retirou sua máscara de palhaço. Mi-Tshe-Ring, o Bobo-Sábio de Mani-Rindu do budismo tibetano havia cumprido o seu papel naquele dia. Todas as crianças tibetanas presentes no local estavam sentadas ao redor dele a ouvir sua história. Toda a população adulta tinha sido instruída perante a loucura e a alegria. Agora poderiam voltar ao trabalho, à sua rotina. O conto alegórico por ele contado serviu de ensinamento para todos. O homem nunca precisará de ninguém para estipular os limites. A loucura controlada desempenha este papel.

    Assim se cumpriu mais um dia da vida de Mao-Lee, o palhaço Mi-Tshe-Ring, de Mani-Rindu.

    Ao ver que todos tinham ido embora, colocou sua máscara de Mi-Tshe-Ring de volta no santuário, e vestiu a de Demiurgo Babuíno brincalhão, e saiu pulando dando cambalhotas por sob a neve do Tibet.




    Quinta-feira, 13 de janeiro de 2005


    Plantão


    Ludwig Van Beethoven não era surdo. Era mudo.

    Poderia você pensar que estou enganado, mas não estou. Ludwig Van Beethoven era mudo, biólogo e matemático e odiava música. Quando digo que odiava música, não digo que não gostava apenas de rococó, mazurcas, valsas, minuetos, ou operetas. Não gostava de jazz, de rock, de soul, de nada. Não gostava de música mesmo! Aliás, L.V.B. não gostava de artes, pois eram demais humanas.

    L.V.B., no momento em que esta história a ser contada aconteceu, trabalhava em casa. Ia apenas uma vez por mês ao laboratório de substâncias fitotarepêuticas onde antes trabalhava diariamente. L.V.B. não dirigia, não andava de metrô, avião, ou qualquer outro meio de transporte, pois achava uma falta de respeito um homo sapiens se locomover mais rápido do que meio metro por segundo. Como despedia diariamente três horas para ir ao lab, e mais três para voltar à sua casa (como relatado, sempre a pé), resolveu trabalhar em casa, como consultor contratado, em seu próprio laboratório.

    L.V.B. realmente era um sujeito estranho. Além de todas estas esquisitices monitorava setenta e quatro samambaias, com um tipo de eletroencefalograma, adaptado por ele, a fim de medir os pulsos e as freqüências emanadas por suas samambaias.

    Todos os dias dedicava as seis horas que economizara deixando de ir diariamente ao Lab, para conversar com suas samambaias.

    Sim, conversar, porque como L.V.B. era mudo, e poderia muito bem ser surdo, já que repudiava o ato de ouvir, vibrava em perfeita harmonia com suas irmãs samambaias.

    Havia se passado um mês desde sua última visita ao Lab. Teria que retomar seus relatórios sobre os novos psicotrópicos pesquisados.

    Foi e voltou.

    Sim, assim. Foi e voltou. Para L.V.B., as oito horas demandadas para ir e vir (resolveu de repente que estava andando muito rápido! Porque não fazer o percurso de ir e vir em oito horas?) não continham nenhum fato, visão, novidade, nenhum lapso de algum momento interessante a ele.

    As duas horas que demorou no Lab, relatando suas pesquisas ao seu superior foram como uma grande viagem alucinógena. Não ficou registrada em sua memória dentro de nenhum fluxo de tempo plausível. Não sabia se havia permanecido lá quinze minutos ou quinze horas.

    Durante mais um mês L.V.B. monitorou suas plantas. Mal trabalhou. Saiu de casa apenas uma vez, pois o entregador do supermercado adoeceu repentinamente, obrigando-o a ir até lá buscar comida, mas no meio do caminho estancou, estagnou, fixou seus pés de homo sapiens no chão como duas raízes rompendo o asfalto a fim de buscar novas terras e pensou.

    Pensou sabe-se lá quanto tempo naquela mesma posição. Se alguém tivesse observado L.V.B. naquele momento teria notado que o único movimento observável exercido por ele, era o dilatar de suas narinas , com inspiração e expiração. Sua respiração era tão suave que nem seu peito se movia. Parecia mesmo que não respirava, exceto por suas narinas.

    Para que comer? Minhas samambaias não comem e vivem.

    Como biólogo, L.V.B. sabia o porque disso. Sabia que por ser um animal desprovido de cloroplastos, o sol só serviria mesmo para produzir um pouco de vitamina D. Ficou frustrado, mas como era mudo, não disse nada!

    Resolveu não ir naquele mês ao Lab. Como não usava Internet por achar desrespeitoso para com o resto do mundo animal (aliás, em se tratando de L.V.B., poderia dizer que achava desrespeitoso também para como mundo vegetal, funge, procariontes, até para as algas cianofíceas, já que segundo seu raciocínio, todo o mundo orgânico sobrevivia sem fibras ópticas e placas de silício há milhões de anos), simplesmente ficou em casa.

    Pensou :
    Toda vez que venho dar água às minhas samambaias, cinco metros antes de chegar perto da parede da estufa onde está pendurada a primeira samambaia, o eletrosamambaiagrama aponta uma pequena variação, proveniente da variação de consciência da primeira samambaia. No decorrer do caminho dentro da estufa, quando percorro o sentido da entrada até o último vaso, o eletrosamambaiagrama vai apontando variações crescentes, obviamente essas variações crescentes seriam justificáveis. Como sua estufa era em formato de corredor, ou seja, todas as setenta e quatro samambaias estavam na mesma parede, como uma fila indiana, a cada vez que chegava cinco metros perto da próxima samambaia da fila, seria somada a informação de que ela também saberia que ele está lá, e assim por diante, até que no final do processo ficaria registrado no eletrosamambaiagrama as variações de felicidade das setenta e quatro samambaias.

    Mas ao olhar os gráficos resultantes dos momentos de felicidade das setenta e quatro plantas, notou uma pequena anomalia. A última samambaia das setenta e quatro estando a pelo menos trinta e cinco metros da primeira, na entrada da estufa, não poderia saber que estou por perto apenas em 2 segundos.

    Pensava e não chegava a uma resposta, já que em seus passos lentos de menos de meio metro por segundo, não conseguiria chegar ao limite do alcance de percepção sensorial da última (ou seja, a cinco metros dela) em menos de sessenta segundos. Mas a última, 2 segundos após a primeira demonstrar as primeiras variações sensoriais, oscilava também.

    Duas semanas depois entendeu, depois de ler e reler os gráficos. Elas conversam uma com as outras, e uma avisa a outra, como na brincadeira do telefone sem fio.

    Mais um mês estava acabando, e os trabalhos sobre o princípio ativo a ser isolado, de uma planta até então desconhecida no sul do Chile, se acumulavam em sua mesa. Na verdade não se acumulavam, pois do ato de acumular entende-se aumentar o volume de algo, com relação a uma amostra anterior. A pesquisa de L.V.B. empoeirava-se, por melhor dizer.

    Elas conversam, pensava. Elas conversam.

    Como viu que não estava evoluindo em sua tese, resolveu voltar à pesquisa da espécime vegetal chilena. Percebeu que uma substância proveniente do vegetal, quando injetada em ratos, fazia com que parassem de comer, mas sem perda de peso, inteligência, não afetando o humor, nem a sociabilidade.

    Chegou a um novo paradigma. Isso não seria possível. Os ratos não comiam a pelo menos um mês e meio. Com sua dedicação para com as samambaias, não foi alimentá-los. Todos deveriam estar mortos. Deveria ter ocorrido primeiramente canibalismo, fazendo perecer os mais fracos. Depois de um mês, nem mesmo os mais sortudos geneticamente poderiam permanecer vivos. Mas era ainda mais inexplicável, pois todos estavam vivos e felizes.

    A confusão reinava em sua mente de mudo-não-surdo. Estava sentado junto às samambaias quando ouviu uma voz. Tá certo que ele não era surdo, mas de onde vinha à voz? Não havia viva alma lá.

    Não havia viva alma humana lá, pois as samambaias naquele momento estabeleceram o primeiro contato com um ser humano. Naquele instante L.V.B. resolveu testar em si a substância do vegetal chileno. Tinha certeza de que era o certo e deveria ser feito, pois não poderia haver uma samambaia má no mundo. Se elas estavam dizendo isso ao ser que as tornava mais felizes todos os dias (pelo menos era o que teimava em apontar o eletrosamambaiagrama), só poderia ser para seu bem.

    Hoje, L.V.B. é o primeiro homem-plantão do mundo !

    Nunca mais sairá de casa, pois não precisa mais comer. L.V.B. é um ser híbrido animal-vegetal. Optou por ser hidropônico, pois por mais que tenha se tornado um homem-plantão, o seu lado humano acha a terra e a poeira ainda um pouco incômodos. Tem seus pés enterrados em enormes canos de água, tomando sol o dia inteiro, ele e suas samambaias.