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  • Quinta-feira, 09 de dezembro de 2004


    O bar



    Chovia canivetes. Hermann não via mais do que alguns poucos metros à frente do capô de seu carro. Às vezes mudava a intensidade do farol de alto para baixo, ou então ligava e desligava os faróis de milha, na esperança de que alguma mudança de intensidade ou ângulo da luz melhorasse sua visão. De qualquer maneira estava simplesmente impossível continuar ao volante.

    Quando o desespero de não saber onde estava beirava o insuportável, avistou luzes. Poderia ser um bar, ou quem sabe um hotel de beira de estrada. Parou o carro o mais próximo possível da porta, e saiu correndo com sua pasta 007 fatigada pelo tempo, posta acima da cabeça, na vã esperança de diminuir o índice de acertos das gotas de chuva sobre o seu corpo.

    Não era um ambiente de todo desagradável.

    Hermann olhou para os lados. O balcão estava cheio de bêbados ébrios e algumas mulheres com olhar ausente, mas ainda via alguma beleza nas pessoas, uma beleza até requintada.

    Lembrou-se do tempo de faculdade, anos atrás, quando ainda nem passava por sua cabeça a idéia de um dia abandonar a vida acadêmica. Afinal, mitologia não enchia barriga e não pagava a conta de luz.

    Há anos Hermann abandonara a Universidade da Federação dos Países Médios Centrais e deixou pra trás a cidade de Ügrlich, capital cosmodemoníaca do conhecimento. Profanado por quaisquer trinta moedas de prata no final do mês, passou a vender títulos de seguro contra manipulação genética por parte das empresas da federação.

    Vivia uma vida financeiramente estável, apesar de sentir-se infeliz e medíocre em seu automóvel novo, percorrendo as estradas com intuito de obter mais e mais clientes em outras províncias, e consequentemente, mais e mais trinta moedas.

    Lembrava-se do tempo em que era um professor respeitável de História e Mitologia Clássica, e das conversas que tinha com seus alunos e pupilos em algum bar semelhante ao que se encontrava, a contemplar a variedade de bebidas. Chamou o barman.

    A banda tocava, não jazz ou alguma música dos séculos XX ou XXI. Um homem alto e bonito tangia as cordas de uma lira e de uma harpa (dependendo do momento da música), e outro baixo, peludo, e com olhar brincalhão, soprava sua flauta. No canto do palco, à meia luz, três lindas mulheres, de beleza divina, dançavam.

    O barman aproximou-se. Seu olhar era de fogo. Ou melhor, podia-se ver que um dia houve labaredas de um fogo ardente dentro destes olhos, mas hoje, apenas continham a informação residual do que um dia eles foram.

    Novamente lembrou-se Hermann de quando era o Prof. Dr. Hermann Augustin Krull, e que também tinha olhos de fogo.

    Somente para puxar conversa, e não por real interesse, perguntou ao barman os nomes do harpista (que agora tangia as cordas da lira novamente) e do flautista saltitante, que agora notava, não usava qualquer tipo de calçado.

    - Ah! - disse o barman - o homem alto e belo é Apolo e o baixo – o flautista – é na verdade... uhm, na verdade não sabemos o nome dele, o chamamos de “o fauno”.
    - Interessante - disse Hermann - Apolo e “o fauno”!
    - O mundo está muito monótono lá fora, as pessoas estão mortas, só que ainda não sabem disso. E no processo nos mataram de forma impiedosa, confusa e não justificada.
    -É, é isso mesmo. – concorodou Hermann meditando um pouco.

    Enquanto a banda seguia tocando, o barman saiu do seu local de trabalho levantando o balcão e pegando o microfone falou :

    - Agora, prezados clientes e amigos de tantas eras, peço um instante da vossa atenção. Estamos mortos lá fora, pois não há mais uma mente apenas que se lembre de nós, que um dia existimos e até dominamos o mundo. Ninguém lembra de você, Posseidon, nem de você, Gaia, nem das tramas de Afrodite... mas aqui entre nós se encontra o último homem que nos manteve vivos lá fora, pois mesmo em sua erudição ingênua e infantil, acreditava na nossa existência. Agora, não nos restam memórias, histórias, nem mesmo lendas. Estamos mortos. Brindemos a isso, Baco!

    O barman trocou algumas palavras com o flautista e com o homem da lira, e em seguida deu início a uma performance com raios de luz, relâmpagos e faíscas de fogo. Ao voltar do palco para o balcão, encontrou Hermann apavorado, frio, gelado, tendo convulsões, e repetindo a mesma pergunta, entre palavras desconexas.

    - Qual o seu nome? Qual o seu nome?

    Com um sorriso nos cantos dos lábios, respondeu o barman:
    - Um dia chamaram-me de Zeus e de Júpiter, mas tive também outros nomes.

    E naquele instante Hermann fechou os olhos, deixou a cabeça cair sobre o balcão e literalmente, apagou.

    - Ei, ei, ei, acorde... - Hermann ouvia apenas uma voz distante, e luzes difusas sobre os seus olhos.

    Olhou para cima e conseguiu fixar sua visão em uma luminária. Tentou encontrar um pouco de calma e bom senso em algum lugar do seu intelecto. “Será que estou morto?” Tentou mexer os braços, mas não conseguiu.

    Uma moça linda, vestida por completo de branco aproximou-se. Naquele momento, Hermann não saberia dizer se ainda estava vivo ou morto, ou se algum dia tinha vivido de verdade.

    Enquanto a moça tocava delicadamente seu braço, ajustando o fluxo de soro e aplicando um medicamento qualquer, disse com um sorriso meigo:

    - Você está no hospital de Ügrlich. Estava vindo do interior para o início do ano letivo, quando seu carro saiu da estrada na chuva. Dois homens o resgataram, mas não se identificaram. Um era alto e muito belo, e o outro, baixo e risonho. Ah, o reitor da universidade mandou estas flores, dizendo que torce pela sua recuperação, e que possa retomar as aulas em breve.



    Quinta-feira, 02 de dezembro de 2004



    E Nós?


    Inconsciente coletivo, fótons, entidades que desfrutam da máxima do não-ser, da eternidade. São únicos por sua dádiva, e múltiplos por serem o mesmo, pois fazem parte do mesmo organismo de consciência coletiva e arquétipos básicos de tudo o que existe no universo.

    Flutuações quânticas do vácuo ? Ah, são maravilhas que aparecem do nada, além do conceito nosso de criação e criador, vindas diretamente do eterno mistério, para ao nada voltarem, ao não-ser.

    E nós ?

    Matéria, energia, e consciência.

    Ser, temporal buscando o perene.

    "O tao que pode ser pronunciado
    Não é o tao eterno.
    O nome que pode ser proferido
    Não é o nome eterno.
    Ao princípio do céu e da Terra chamo "Não-ser"
    À mãe dos seres individuais chamo "Ser".
    Dirigir-se para o "Não-Ser" leva
    À contemplação da maravilhosa essência;
    Dirigir-se para o "Ser" leva
    À contemplação das limitações espaciais.
    Pela origem, ambos são uma coisa só,
    Diferindo apenas no nome.
    Em sua unidade, esse Um é o mistério
    O mistério dos mistérios
    É o portal por onde entram as maravilhas."
    (Tao-Te King - Lao Tse - tradução de Richard Wilhelm)

    Não nos foi dado, pelas leis do universo, o poder da contemplação do eterno, ou do não-ser. Nossa percepção é quadrimensional apenas.

    Mas o homem, mesmo em sua limitação de percepção e sua temporalidade de 70, 80 anos, através da escrita pôde acumular conhecimento. Hoje um jovem de 25 anos, se direcionado por sua vontade, pode reter conhecimentos suficientes de matemática, física, cosmologia, biologia, teoria da informação e cultura humanística para compreender em grande parte o que é o universo eo que é a vida, sem recorrer a qualquer fé, que em sua origem dogmática já explicita a impossibilidade de compreensão racional. É um absurdo que ainda existam misticismo, astrologia, e outras crendices.

    Nunca contemplaremos o Não-Ser, pois somos Ser, não somos apenas fótons, nem entidades flutuantes do mundo quântico. Somos consciência, beleza e sensibilidade, razão e força, música e poesia, potência e repouso.

    Somos todos esponjas secas. Esperamos ser encharcados por idéias que possam nos levar a algo mais próximo do eterno.

    "Se as portas da percepção se encontrassem devidamente purificadas, tudo
    assomaria aos olhos dos homens como deveras o é - infinito.
    Pois o homem se emparedou completamente, a tal ponto que só pode perceber
    todas as coisas através das frestas exíguas de sua caverna."
    (Willian Blake - As núpcias do céu e do inferno - Tradução de Oswaldino Marques)