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Quinta-feira, 31 de março de 2005
As portas da percepção
por Thiago Lotufo O que tem a ver LSD com cinema? Haxixe com literatura? E heroína com música? Drogas e arte existem desde tempos remotos e a relação entre elas arruinou artistas, mas produziu obras-primas também.
Veneza. 3 de agosto, 1956: "Caro Doutor, gostaria de agradecer sua carta. Anexo segue o artigo sobre os efeitos das várias drogas que usei. Não sei se é apropriado para o seu jornal. Não faço objeção quanto a meu nome ser usado. Nenhuma dificuldade com a bebida. Nem desejo de consumir qualquer droga. Saúde geral excelente. Por favor, transmita minhas saudações a Mr. - (nome omitido). Utilizo seu sistema de exercícios diariamente, com excelentes resultados. Estive pensando em escrever um livro sobre narcóticos, se encontrar um colaborador que saiba lidar com a parte técnica." O texto, intitulado "Carta de um empedernido viciado em drogas perigosas", é do escritor americano William Burroughs e foi endereçado a John Dent, médico britânico pesquisador do vício em drogas, que a publicou no British Journal of Addiction. Na carta, Burroughs, que passava por um período de desintoxicação, descreve de maneira minuciosa suas experiências com dezenas de drogas de diferentes classes: opiáceos (morfina, ópio, heroína), estimulantes (anfetamina, cocaína, bezedrina), cannabis (maconha, haxixe), alucinógenos (mescalina, ayuahuasca) e álcool, entre outras. As descrições foram incluídas como um apêndice ao tal livro sobre narcóticos que ele acabou escrevendo. Naked Lunch ou Almoço Nu, traduzido para o português, foi publicado em 1959. Delirante, caótica e autobiográfica, a obra, conseqüência de mais uma das recaídas do autor, foi repudiada pela crítica. Seu valor só foi reconhecido anos depois, e até hoje é tida como um dos marcos da história das letras. Mais: Almoço Nu, ao lado de On the Road (1957), de Jack Kerouac, e Uivo (1956), de Allen Ginsberg, converteu-se num clássico da literatura beatnik - e da literatura sobre (ou sob o efeito de) drogas também. Essa relação entre drogas, criação e escritores e outros artistas, como pintores, músicos e atores, não foi inaugurada por Burroughs e sua turma. Registros de 50 mil anos atrás indicam que os neandertais já usavam uma erva estimulante com propriedades semelhantes às da efedrina e desenhos feitos em cavernas no período Paleolítico sugerem que os artistas conheciam alguns alucinógenos. Na Odisséia (cerca de 8 a.C.), Homero faz referências a uma bebida, oferecida por Helena a Telêmaco, capaz de aliviar a dor, e a uma planta (lótus) que seduz alguns marinheiros de Odisseu. O primeiro livro realmente dedicado ao tema é de 1821: Confissões de um Comedor de Ópio, escrito pelo inglês Thomas De Quincey. Assim, por um lado, os beats (o termo foi usado pela primeira vez em 1948 por Kerouac e pretendia transmitir a idéia de "beatitude") não foram os primeiros a usar drogas e a escrever sobre elas. Por outro, não foram também os últimos. Álcool, maconha, heroína, ácido lisérgico (LSD) e substâncias afins sempre embalaram intimamente a criação artística (não toda, obviamente) e negar essa relação é tão ingênuo quanto ainda acreditar que o Sol gira ao redor da Terra - e não o contrário. A lista de artistas e intelectuais que produziram ou produzem de mãos dadas com as drogas é gigante. Na música, os exemplos vão de Charlie Parker a Kurt Cobain; nas letras, do alcoólatra Lima Barreto e o "maldito" Leminski ao jornalista doidão Hunter Thompson; no teatro, de Antonin Artaud (viciado em ópio) a Fauzi Arap; no cinema, de Easy Rider a Zé do Caixão (sim, ele fez um filme chamado O Despertar da Besta, em que um psiquiatra injeta LSD em viciados para estudar os efeitos do tóxico diante de imagens do próprio Zé do Caixão); e, finalmente, nas artes plásticas, de Van Gogh (viciado em absinto) a Hélio Oiticica. O importante - longe da apologia ou da condenação - é mostrar como essa união se relaciona com o desenvolvimento das artes e como ela operou transformações, boas ou ruins. Há bad trips e overdoses nesse casamento de risco? Sem dúvida. Há obras e histórias geniais decorrentes dele? Sem dúvida também. "Para determinados artistas, as drogas serviram para aguçar a sensibilidade", diz Jorge Coli, professor de história da arte da Unicamp. "Mas elas não desencadeiam a criação se não houver o espírito criador." Jean-Arthur Rimbaud, poeta francês do século 19 e autor dos clássicos Uma Temporada no Inferno e Iluminações, acreditava no "desregramento dos sentidos" como meio de criação. "O poeta se faz vidente por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos", afirmava ele. O objetivo do desregramento era "reter a quintessência" das coisas. E, de acordo com Rimbaud, o haxixe, o ópio e o absinto eram bons elementos para atingi-lo. Os beatniks - incluindo Gregory Corso, Gary Snider, Lawrence Ferlinghetti, entre outros da geração -, por sua vez, queriam ser um estilo de vida. "Antes da aparição dos beats não havia, nos jovens da época, qualquer relação entre seus mundos e suas mentes", afirma o jornalista Bruce Cook em seu livro The Beat Generation ("A Geração Beat", sem tradução para o português). A época, vale lembrar, era a década de 1950. "Em 1954, os Estados Unidos viviam o apogeu da Guerra Fria, acabando de sair da Guerra da Coréia e em pleno período do macarthismo, de perseguições a intelectuais militantes ou suspeitos de pertencerem a organizações de esquerda", afirmou Cláudio Willer na introdução da versão brasileira de Uivo, Kaddish e Outros Poemas, de Allen Ginsberg. "Eu acho que a marijuana é um instrumento político. É um estimulante catalítico para toda consciência ligeiramente ampliada", afirmou Allen numa entrevista de 1960. Na mesma época, num depoimento para Gregory Corso, concluiu que "o negócio seria fornecer mescalina (alucinógeno extraído de um cacto) ao Kremlin e à Casa Branca, trancar os mandatários pelados num estúdio de televisão durante um mês e obrigá-los a ficarem falando em público até descobrirem o significado dos seus atos". "É assim que a televisão poderia ser adaptada ao uso humano." Allen e companhia estavam, obviamente, contra a ordem do dia. E, contra eles, estava o establishment - de políticos a críticos. Uivo, quando publicado, em 1956, levou à cadeia seu editor, Lawrence Ferlinghetti, por venda de material obsceno. Liberado mais tarde, o livro se converteu num dos mais influentes da poesia americana do século 20. Além disso, abriu caminho para que On the Road (1957), escrito em três semanas e com 186 mil palavras num rolo de papel de telex, ficasse cinco semanas na lista dos livros mais vendidos. Só para lembrar: Kerouac precisou de muita benzedrina (estimulante), cigarro e café para pôr no papel suas frenéticas viagens pelos Estados Unidos e México embaladas pelo jazz. À época, o bebop, uma variação "acelerada" do jazz, estava em voga. E Charlie Parker era um de seus representantes supremos. Bird, como o chamavam, tocava seu saxofone movido a vinho barato e muita heroína, a droga da moda e socialmente aceitável entre as pessoas ligadas à música. "Achava-se que usando heroína era possível tocar como Charlie Parker", disse Frank Morgan, um dos companheiros de Charlie, num documentário sobre o saxofonista. O uso da droga ajudou-o a gravar discos sensacionais como Jazz at Massey Holl, mas também levou-o a uma morte prematura, aos 34 anos. Para se ter uma idéia do estrago que a droga lhe fez, o médico responsável pela autópsia - sem saber a idade real do músico - estimou que o corpo era de alguém entre 55 e 60 anos de idade. "Música é a sua própria experiência. Pensamentos, sabedoria. Se você não vive isso, não transmitirá com o seu instrumento", afirmou Charlie certa vez. No jazz, a heroína correu solta nas veias de muitos outros artistas. Entre eles, Billie Holiday, Chet Baker e Miles Davis, três nomes sagrados do gênero. Miles, dizem, teria criado o cool jazz ouvindo bebop e sendo auxiliado por algumas seringas. Mas nem sempre foi assim. No início do século 20, em Nova Orleans, o jazz era associado à maconha. Na década de 30, diversas músicas sobre o tema já haviam sido compostas e até Louis Armstrong falara bem a respeito da erva. Milton Mezzrow, um jazzista judeu de Nova York, fez o mesmo na década de 40 e afirmou em sua autobiografia, Really the Blues (algo como "O Verdadeiro Blues", sem tradução para o português), que fumar maconha o ajudava a tocar melhor. Anos depois, porém, a heroína é que passaria a dominar a cena. E seu uso se disseminou até o rock'n'roll dos tempos atuais (Pete Doherty, vocalista da banda inglesa Libertines, já foi internado e preso por causa de sua dependência da droga). Nesse gênero musical, pouquíssimos chegaram ao nível de Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones. Na década de 70, por exemplo, por conta do vício em heroína, ele chegou até a ter de "trocar de sangue" numa clínica suíça. "Trocar" é exagero. Na verdade, seu sangue foi filtrado numa máquina para que substâncias tóxicas fossem retiradas. Apesar da dependência de Keith (Jagger também não escapou), os Stones produziram alguns de seus melhores álbuns entre 1969 e 1971. Let It Bleed, de 69, pode ser considerado o primeiro "disco de heroína" do grupo. De acordo com a crítica inglesa, "Gimme Shelter", uma das faixas, teria sido composta por Keith numa "temporada" de algumas horas no banheiro de casa com a guitarra e um saquinho de heroína. Exile on Main Street, gravado em 1971 ( lançado em 72) e considerado a obra-prima dos Rolling Stones, é pico do começo ao fim. "Eu estava pegando pesado com heroína", afirmou Keith Richards no ano seguinte. "A heroína alimenta o simbolismo de se viver no limite, do tipo 'até onde eu consigo ir?'", afirmou numa entrevista à revista britânica Q Harry Shapiro, autor de Waiting For the Man: The Story of Drugs and Popular Music (algo como "Esperando pelo Homem: A História das Drogas e a Música Popular", sem tradução para o português). Eric Clapton, Steven Tyler, Lou Reed e Iggy Pop chafurdaram nela, mas sobreviveram. Kurt Cobain e Janis Joplin, entre outros, foram além do limite. Paul McCartney admitiu ter experimentado heroína também, mas sem saber do que se tratava. "Não me dei conta do que havia usado. Me deram algo para fumar e eu fumei", afirmou em 2004 à revista britânica Uncut. Na publicação, Paul relembrou quando ficou preso por dez dias no Japão, em 1980, por estar com 225 gramas de maconha na bagagem. "Estava prestes a ir para o Japão e não sabia se conseguiria fumar alguma coisa por lá", disse. "O negócio era bom demais para jogar na privada, então eu resolvi levar comigo." Quanto aos Beatles, é inegável que a maconha e o ácido lisérgico (LSD) foram fundamentais na criação de determinados trabalhos, especialmente em Revolver, Rubber Soul e Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Ringo Starr conta na série de documentário Beatles Anthology que no período de Rubber Soul a atitude do grupo mudou. "Acho que a maconha teve muita influência nas nossas mudanças", afirmou. Na mesma série, Paul disse: "Mudamos de 'She Loves You' para canções mais surrealistas". Já a influência do LSD foi escancarada em "Lucy in the Sky with Diamonds" e "Day Tripper", além da história de que o produtor George Martin teve de levar Lennon para tomar um ar no telhado da gravadora por causa de uma viagem de ácido. Os Beatles, porém, como afirmou Ringo, não conseguiam fazer músicas se estivessem alterados demais. "Sempre que abusávamos a música que fazíamos era uma bosta total", disse ele. O LSD foi o combustível fundamental para os anos 60, época do amor livre, da Guerra do Vietnã e dos festivais. Na terceira edição do festival da ilha de Wight, em 1970, na Inglaterra, drogas e música proporcionaram algo inusitado: um show de Gilberto Gil, Gal e Caetano para cerca de 200 mil pessoas. Os três e mais umas 20 pessoas tocaram no mesmo palco onde dias depois (foram cinco dias no total) estiveram Jimi Hendrix, The Doors e The Who. A apresentação aconteceu graças a Cláudio Prado, membro do grupo que gravou uma jam session ocorrida à base de LSD e maconha na barraca do hoje ministro Gilberto Gil. Ele levou a fita até a organização do festival, que autorizou os brasileiros a tocarem no segundo dia - dedicado a artistas pouco conhecidos. O show durou cerca de 40 minutos. No repertório, "London, London", "Aquele Abraço" e muito improviso. "O ácido nos deixou entusiasmados", diz o escritor Antonio Bivar, que foi ao palco tocar reco-reco. Co-tradutor da edição brasileira de On the Road, ele contou a experiência da ilha de Wight em seu livro Verdes Vales do Fim do Mundo. "Caetano e Gal não haviam tomado LSD." Nesse caso, o alucinógeno ajudou a catalisar um momento da expressão artística. Mas nem sempre nem com todo mundo é assim, do tipo experimente alguma droga e saia escrevendo poemas de qualidade, pintando belos quadros e fazendo boa música por aí. Veja o que o escritor Aldous Huxley, autor de As Portas da Percepção (em que relata seu uso da mescalina), de 1954, e protagonista de experiências com LSD, disse numa entrevista à Paris Review em 1960. Perguntaram se ele via relação entre o processo criativo e o uso de drogas como o ácido lisérgico. Trecho da resposta: "Para a maioria das pessoas é uma experiência significativa e eu suponho que de um modo indireto pode ajudar no processo criativo. Mas não acredito que alguém possa se sentar e dizer 'Eu quero escrever um poema brilhante e por isso vou tomar ácido lisérgico'. Não acho, de maneira alguma, que você vai atingir o resultado esperado." Para saber mais Na livraria: The Road of Excess: A History of Writers on Drugs, Marcus Boon, Harvard University Press, EUA, 2002 Waiting For the Man: The Story of Drugs and Popular Music, Harry L. Shapiro, Helter Skelter Books, Grã-Bretanha, 1999 Confissões de um Comedor de Ópio, Thomas De Quincey, L&PM, Porto Alegre, 2001 Alma Beat, Vários, L&PM, Porto Alegre, 1984 Heroína e o Apocalypse Veja o que alguns artistas fizeram com drogas. E vice-versa Santa Tríade William Burroughs (foto), Jack Kerouac e Allen Ginsberg foram os principais nomes do movimento beat, iniciado na década de 1950. Formados em Columbia (Kerouac e Ginsberg) e Harvard (Burroughs), rejeitaram a concepção de literatura vigente na época e criaram uma nova maneira de escrever Erva ou pó? Apartamento de Raul Seixas. Ele, defensor da cocaína, e Tim Maia, amante da maconha, engatam uma discussão acalorada sobre os prós e contras de cada droga. Ânimos exaltados, Tim encerra o papo dizendo que pó "afrouxa o brioco". Por fim, acende mais um, Raul estica mais uma e quase fazem uma música juntos. A história está no livro Noites Tropicais, de Nelson Motta Guru? Eu? Ex-ator e diretor de teatro, Fauzi Arap ficou conhecido por Navalha na Carne e Perto do Coração Selvagem, ambas peças encenadas na década de 1960. Naquele período, realizou experiências com o LSD, mas abandonou-as quando começaram a vê-lo como um guru Heroína Gerenciados por Andy Warhol, Lou Reed e companhia lançaram The Velvet Underground & Nico em 1967. Entre as faixas, "I'm Waiting For The Man" e "Heroin" faziam referências explícitas às drogas - num tempo em que o tema ainda era tabu Pileque Zeca Pagodinho não seria páreo para Nelson Cavaquinho. O compositor de "Juízo Final" e "A Flor e o Espinho" tomava todas e mais algumas, compunha no bar e, no dia seguinte, só conseguia se lembrar das melodias que gostava de verdade Inferno Coppola viveu seu próprio Vietnã de insanidades e abuso de drogas durante as filmagens de Apocalypse Now. Alguns atores usaram álcool, maconha e ácido para atuar. Martin Sheen, o protagonista, sofreu um infarto. Na trilha, "The End", dos Doors Meteoro Jean-Michel Basquiat, nascido em Nova York, foi um meteoro no mundo das artes. Sua carreira durou apenas oito anos e começou com grafites nos trens de subúrbio. Mais adiante, suas telas o ajudaram a exorcizar os demônios pessoais - como o vício em heroína, que o matou aos 27 anos Na mente "Tudo que escrevi até hoje foi sob o efeito de drogas, principalmente haxixe. Só uso drogas psicodélicas, não gosto das outras. Cogumelo eu também tomo bastante. Fumo cerca de 50 gramas de haxixe por semana." Palavras de Alan Moore, criador de Watchmen, à extinta revista General Romantismo Rimbaud (a lápis) e Baudelaire, poetas franceses do século 19, foram os expoentes da tradição romântica. Viviam em desacordo com os valores burgueses vigentes. Ambos tiveram experiências com haxixe e as colocaram no papel. Baudelaire em Os Paraísos Artificiais, livro que contém poemas dedicados ao haxixe e ao ópio, e Rimbaud em poemas como "Manhã de Embriaguez" Tropical Inventor do termo Tropicália, o artista plástico Hélio Oiticica era um transgressor por excelência. Apologista das drogas, criou em 1973 juntamente com o cineasta Neville D'Almeida a polêmica série Cosmococas, que traz imagens de ícones como Marilyn Monroe modificadas por trilhas de cocaína O teste do ácido do refresco elétrico Embarque no colorido ônibus de Ken Kesey Foi uma viagem louca. Começou em junho de 1964 nos arredores de São Francisco e terminou depois de um mês em Nova York. O veículo? Um ônibus escolar de 1939 pintado com cores berrantes. No volante, Neal Cassidy, o beatnik que inspirara Jack Kerouac a escrever On the Road. No comando, Ken Kesey, cujo objetivo era contestar a sociedade americana e propagandear o uso do ácido lisérgico, legal na época. A viagem, na verdade, começara bem antes, em 1959, ano em que Kesey, então estudante em Stanford, se voluntariou para pesquisas do governo sobre drogas psicoativas. A partir dessas experiências, ele escreveu seu livro mais celebrado: Um Estranho no Ninho. Com o dinheiro ganho com a obra, comprou umas terras, montou o grupo musical Merry Pranksters e iniciou os seus próprios testes psicodélicos, conhecidos por "Acid Tests". Em 1964, teve de ir a Nova York para o lançamento de seu segundo livro. Foi aí, então, que teve a idéia de comprar e reformar o velho ônibus e embarcar com Cassidy e os Merry Pranksters. Ao longo do caminho, cruzaram com Allen Ginsberg, Kerouac e o "papa" do ácido, Timothy Leary, que, segundo consta, não se entusiasmou muito com o circo todo. A aventura de Ken Kesey foi reconstruída por Tom Wolfe no livro O Teste do Ácido do Refresco Elétrico.
Quinta-feira, 10 de março de 2005
Tubarões voadoresNão recordo bem quando passei a morar na casa, nem como a descobri, nem porque. Talvez sempre tenha morado nela... Era Sábado de manhã, e como de costume, todos os moradores da casa faziam buracos no chão. Toda sala estava cheia de buracos, cozinha, banheiro, a casa inteira, e a cada manhã os buracos eram fechados e novos buracos seriam abertos, maçantes e monótonos previsíveis buracos cúbicos. Nunca tinha participado do ritual de cavar, mas também não me incomodava, por assim dizer. Na verdade o que realmente perturbava-me eram os tubarões voadores, Orcas e focas. Mas os tubarões eram de causar suicídio em qualquer um, em longo prazo. Voavam em círculos perto do teto, da casa, e vez em quando se aproximavam de nós, pois as focas, quase sempre se afundavam nos puffs de hélio, que voavam pela casa. Às vezes, ao puxarmos alguma cordinha, de algum Hélio-Puff, para trazê-lo ao chão, encontrávamos alguma foca escondida nas dobrinhas do assento voador, como de um grande cachorro japonês. Depois de encontrar focas nos 9 Puffs da casa, deixei-os subir novamente ao teto, e saí de carro, aleatoriamente, pois não agüentava mais focas, e os buracos estavam realmente tirando-me do sério. Dei a ignição e saí. Era uma bela manhã de Sábado e o sol estava belo e azul, e o céu lindo, de um vermelho maravilhoso, como não via desde a tenra infância. Era um vermelho sangue, lindo, com traços de um rosa delicado. O céu estava limpo, sem nuvens. O único azul que se via era do sol mesmo. O céu mais vermelho do ano, simplesmente belo. Estava subindo rápido a avenida Rebouças, e ao chegar ao último farol antes da avenida Paulista um moleque veio de encontro a mim, aproximando-se da janela do meu carro. Fiquei a olhá-lo e a ser observado talvez por um minuto inteiro, e não sei porque não furei o farol vermelho e deixei o tal moleque para trás. Fiquei fitando-o até que veio o movimento esperado por meu subconsciente. Mãos de moleque por dentro da jaqueta a mostrar o volume de algo, que seria uma arma de corte – uma faca, ou canivete, talvez. De repente começou a gritaria : - Passa a grana tio, passa grana, senão eu te furo, eu te furo ! Disse calma ao moleque, e abri lentamente a minha carteira. Mostrei o interior ao moleque e disse : Olha só, está vendo ? Tenho Cem reais aqui, neste bolo de notas de Dez Reais, ta vendo moleque, o bolo ? Mas só vou lhe dar Dez Reais. O moleque não entendendo nada, achando inexplicável a minha atitude, primeiro atônico, depois bravejando, dizia : Dá tudo, tio, senão eu te furo mesmo ! Novamente eu disse : Só dez reais, ou não dou nada. Não sei porque fiquei com dó do moleque, e resolvi dar um pouquinho a mais. - Dou Oitenta reais, ta bom pra você ? O moleque ficando todo radiante de felicidade, logo falou : Ta bom, tio, firmeza, valeu. Abri a carteira e dei os oitenta reais, mas olhando bem os vinte reais restantes, e os oitenta na mão do moleque, mudei de idéia. Cacete, pensei ! Ele ta oitenta mangos... Rapidamente agarrei o braço ainda distraído do moleque, próximo a mim, e acelerei o carro, descendo a Consolação, e arrastando o moleque pelo braço, por fora do carro, correndo, caindo, se arrastando enquanto eu mantinha o carro a uns quinze quilômetros por hora. Enquanto ele berrava, solta, solta, solta, eu disse : Quanto você me dá para eu soltar o seu braço ? Quanto ? -Oitenta, oitenta dizia o moleque, devolvo os oitenta paus. Reduzi a velocidade para uns dez quilômetros por hora, e retruquei rapidamente, me dá os oitenta e tudo que você ganhou neste farol hoje, que eu lhe solto. Recebi um bolo de notas de cinqüenta reais, e dez, e saí, deixando o moleque sentado na calçada a chorar, no meio da consolação. Olhando o bolo de dinheiro logo percebi que havia algo em torno de trezentos reais.Legal, daria para a recarga de Hélio dos Puffs ! Sonho ocorrido na obscura mente do amigo Mauro Pontes.
Quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005
Devido ao fato de estar sobrecarregado de funções musicais nesta semana convidei um amigo meu – pintor - que vivenciou de perto duas histórias policiais singelas. Deixo vocês nas mãos do querido Olavo Teixeira.
Contos Policiais (baseados em fatos reais) por Olavo Teixeira
Aquela noite seria especial. Fazia tempo que eu sonhava com um pouco de paz em meu namoro, e naquela noite, tudo daria certo.
Era dia dos namorados e iríamos fazer um piquenique em uma praça segura, escolhida a dedo, tomando vinho e comendo um saboroso jantar, feito por minhas próprias mãos.
Tudo estava dando certo, saindo maravilhosamente belo. Tudo bem que não tínhamos taças apropriadas para aprisionar a Periquita, mas fazia parte do piquenique-teórico pensado na minha insana cabecinha, natural, totalmente desprovido do conforto de um quarto de motel, hotel, ou da minha própria casa.
Havia muitos pássaros por perto, quero-quero, corujas, e outras aves noturnas, que faziam um constante ruidinho de fundo, com seus pios, e as leves patinhas à pisar nas folhas secas, perto do círculo de pedras onde estávamos.
Meia garrafa tinha-se ido, e fermentava nossas consciências que borbulhavam amor. O jantar deu base saborosa para o pouso suave do vinho, e o estômago também retribuía com amor, à digestão. Cérebro, coração e estômago. Que mistura ideal, quando bem equalizada.
Acendemos um cigarro cada um, e namorávamos felizes e em paz.
De repente houve o inesperado infortúnio. Estávamos cercados com lanternas apontadas para os nossos olhos. Como em uma tática de guerrilha utilizada em países em guerra, fomos abordados por cinco policiais (ou representantes de uma instituição... não deveriam ser chamados de policiais) que nos cercaram, com as mencionadas lanternas, enquanto outros dois esperavam-nos em baixo das pedras, no caso de fugirmos. Tenho que admitir que foi impressionante a perícia no ato de “seek and destroyer”, mas dois namorados, tomando vinhos e comendo numa praça necessitam de tamanha demonstração militar ?
Como tenho mais intelecto do que aquelas pequenas mentes atrofiadas pelo desuso, convenci-os de que era um erro estarem lá, e nos abordarem daquele jeito, e assim foram em paz, sem ao menos uma revista e pedindo-nos desculpas.
Se você achou isso um absurdo, a próxima situação a ser narrada é ainda pior.
(...) ************************************************(...)
Todos acham que os policiais só realizam e fazem atrocidades na periferia. Vocês não estão errados em pensar assim, porque realmente fazem, mas também realizam atos terroristas nos bairros de classe média alta.
Duas amigas minhas, médicas, saindo do turno do seu plantão, antes de irem para casa, resolveram fumar um pequeno baseado, para relaxar, em uma pracinha isolada, não tão perto do hospital. Estariam indo para casa após, e obviamente não tinha nada de errado nisto (fora o fato da absurda lei de contravenção... é crime embreagar-se de cannabis, mas não crime entorpecer-se de álcool), já que não iriam voltar ao hospital, andavam de metrô, e estavam relaxando, era melhor do que tomar uma cervejinha -pensavam elas.
Foram à praça e sentadas de branco num banquinho sossegado tinham seus instantes de relax, esquecendo um pouco da rotina árdua que tinham diariamente, ajudando outras pessoas, entregando-se a elas.
Sentiram apenas um cutucão às suas costas. Dois policiais pegaram-nas e sem possibilidade de conversa, justificativas, colocaram-nas na viatura, onde estava um terceiro policial e começaram a dar voltas por São Paulo aterrorizando-as. Diziam que elas iriam ser presas, e duas patricinhas bonitinhas, loirinhas e cheirosinhas como elas, seriam bonequinhas de todo um pelotão feminino de mulheres, presas por terem cometido crimes, e outras até inocentes, como o caso das duas médicas, mas que depois de meses, ou anos, encarceradas juntas às coisas mais infames, sujas e desumanas deste mundo, acabam se corrompendo.
Depois de quase uma hora de gasolina gasta, pagas com o imposto da democracia, disseram que se elas quisessem não passar por isso, teriam que tirar todo o dinheiro das suas contas correntes.
Pararam em um banco vinte quatro horas, ficaram a uma distância segura das câmeras de vigilância (todos estavam sem os seus nomes colocados sobre os uniformes), e fizeram-nas sacar todo o dinheiro.
Deixaram-nas quilômetros de distância sem dinheiro nem para o metrô.
Qualquer semelhança com um seqüestro relâmpago é mera coincidência.
Quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005
O que é perceber uma música? O que é perceber uma música ? Não sei. Mas estou tentando saber. Ontem ao sair de um concurso de música, encontrei-me com minha namorada e fomos até a USP rever uns amigos e relaxar um pouco. Deparei-me com um amigo que não via talvez há 2 dois anos, que estudava no instituto de física comigo, e na mesma época que saí para estudar música ele foi estudar filosofia. Sentamos nas grandes pedras da praça do relógio e uma conversa interessante surgiu. Disse a ele que há tempos uma inquietação mental não me deixa em paz. Contei-lhe que ao meu ver um ocidental ouve a música com o ouvido, que aparentemente não tem nada de anormal, mas na verdade é um fato absurdo. Todos já devem ter notado que ao se submeter o corpo às proximidades de uma grande caixa de som, as freqüências graves são sentidas em ondas pelo nosso corpo. Você ouve também com o corpo as batidas do drum ‘n bass por exemplo. Para um ocidental, como eu, só nos extremos percebemos isso, geralmente nos graves, ou nos limites agudos, quando sentimos dor ou incômodo dentro do ouvido. Para um oriental, devido às suas postura “yogue” de ser, o perceber a música passa por todas as moléculas do corpo, porque o a música realmente gera vibração em nossos corpos, apenas não estamos treinados para detectá-la, não crescemos adestrando esse sentido, além dos cinco, SENTIR AS VIBRAÇÕES, com o corpo. Isto estava muito claro para mim, em termos físicos e musicais, que somos pequenos, nossa percepção infantil limitada nos engana dizendo-nos que ouvimos alguma coisa, mas não sabia até que ponto era viagem minha ou não. Poderia ser alguma alucinação interna de algum eu meu querendo provar alguma teoria minha. Este meu amigo falou que ao estudar filosofia oriental deparou-se com algo parecido com o assunto das minhas inquietações. Disse que para um ocidental a análise de qualquer amostra, fator, ou valor (em questão básica e diretamente ligada à percepção) é a análise do corpo denso, e para o oriental é o estado. Isso seria o suficiente para embasar a minha teoria. Que provavelmente nem é minha, talvez já tenham pensado nisso, mas naquele momento era minha e dele (já que ele abraçou a conversa com afinco). Mas o fato de um oriental ouvir a música desse jeito, organicamente, cada nota percebida por cada molécula do corpo, é maravilhoso, gostaria muito de chegar a esse nível de consciência, mas ainda não é tudo. É claro que é mais abrangente, mas não completo, porque a música cíclica é muito diferente da música linear, e depois de milênios pensando no universo cíclico a música passou a ser assim também, e este estado de perceber as coisas por estados é mais fácil de se chegar quando se pensa naturalmente ciclicamente, não linearmente como nós. Mas a música linear existe também, e não deve ser desprezada, pois é muito poderosa. Provavelmente até depois de milênios da civilização oriental, como no caso da Índia, até o os corpos físicos sejam mais sensíveis, mais evoluídos nesse sentido... sei lá ! Houve certa vez um maestro da Índia que estando assistindo uma apresentação sinfônica ocidental, após os músicos afinarem os seus instrumentos antes ainda da execução da obra musical em si, pôs-se ereto e aplaudiu afinação. Para ele, aquele puxar e soltar de cordas, de palhetas, de bocais já era música. Que lição de humildade para nós, não ? E fico eu a pensar. O que é perceber uma música ?
Quinta-feira, 03 de fevereiro de 2005
POESIALUCINOGENACONTADAQuente . Calor entorpecente Nas três mãos suadas da gente Juntas, formando quatro superfícies. Em Londres, o frio anestésico Mostra fúria e poder gélidos Escondendo as seis mãos monolíticas Em luvas, no bolso ou cerradas. Aqui no México, separadas Das luvas, unidas às mãos. Entorpecente furioso, pai e mãe Experimentaram, enquanto el brujo O filho carregava ao seu cuidado. John e Anna viam quatro, Cada um tinha quatro, Mãos e pés, mas não iguais Em “duas duplas de dois” – riram ! Consciente John, e Anna no momento Às vezes subconsciente em quatro pares De combinação super cientes em Jc-Ac Jsc-Ac Jc-Asc Jsc-Ac Viam tudo com os olhos da percepção ........ Abertos, mas não tão abertos para ver o infinito que é grande. Acredite ! Abertos apenas em dois. O Consciente abraça o seu par noturno. Ela tornou-se intensificada Com cores fantásticas De um mundofluido de sonhos Abarcam em vigília A dividir a mente. Tantos sons no deserto. OUÇA ! OUÇA ! OUÇA !
Do México guardaram a viagem E agora John e Anna voltaram A ser dois e receberam de volta O filho do brujo. Voltarão A Londres os três, modificados. Os pais fundiram-se novamente. Consciente e subcosnciente Vigília e grande sonho da gente Adormecidos pela ocidental tradição Acidental tradução não ocorrerá Alberto, o filho, sabe do dia a vir Ao México, ao brujo nagual retornará. Aberto à percepção será no dia Da iluminação. Suas consciências Reunirá com el brujo, como em seus pais. No frio de Londres, as seis mãos Juntas, em três pares guardados Nas luvas, não mais separadas. O frio anestésico Com seu poder gélido Em ventos a esmo. Cortam a pele, do rosto a rachar. As luvas não mais separam O Eu mesmo !
Quinta-feira, 27 de janeiro de 2005
O desaniversário de Jacob
Um coelho branco, mas não um mero coelho branco. A história a ser contada é sobre Jacob. Um coelho devoto hindu. Não me pergunte se era xiita ou outra coisa, era apenas hindu. Todo dia ao levantar-se, antes ainda da primeira refeição, se alongava, respirava profundamente utilizando tanto o diafragma de coelho hindu (ele o tinha mesmo!), quanto seus pulmões. Quando seu cérebro já estava hiper ventilado começava com a respiração circular. Da cultura milenar hindu se interessou por música, yoga e meditação. Bem, o Kama Sutra sabia de cor, afinal ele era um coelho, e a prática sempre leva a perfeição. Interessou-se tanto por música que inventou um tipo de aparelho ortodôntico para colocar seus incisivos “para dentro” da boca, pois atrapalhavam-no a tocar flauta. Jacob era um exímio coelho flautista e da casta mais alta. E como tocava bem sua flauta de osso! Comeu algumas folhas de uma verdura qualquer que encontrou em seu jardim, respirou novamente de maneira profunda, deu umas assopradas doces em sua flauta e saiu, não antes de dizer um Ohm bem longo e deveras solene. Hoje era seu desaniversário de número 364, o que significa que teria que fazer a viagem como peregrino a fim de encontrar seu guru. Também teria que se abster de sexo, o que para um coelho significa encrenca, mesmo para um coelho yogue. Enquanto corria pelos campos esforçava sua mente a lembrar dos seus outros 363 desaniversários passados, depois do último aniversário, e da última peregrinação, por conseqüência, fez algumas contas e notou que como mantinha uma média de 50 cópulas por dia, tinha tido 18.200 parceiras no último período desaniversárico... bem talvez algumas tenham se repetido, mas para inflar seu ego de coelho preferia pensar que foram 18.200 coelhas diferentes. Sim, tudo estava na mais perfeita ordem. Boa média de sexo, meditação, yoga e música! Seu guru iria ficar satisfeito e dar-lhe uma boa passagem e uma revelação profunda de aniversário. Zara vinha correndo também. Vinha na direção contrária de Jacob. Zara era uma raposa vermelha, e como Jacob, não era uma mera raposa, era uma raposa vermelha condecorada paquistanesa. Vinha trazendo um embrulho e uma mochila às costas. Zara era uma paquistanesa como manda o figurino. Estava com o rosto à mostra, mas como não havia ninguém por perto, ninguém iria vê-la, logo sua falta não seria notada. Zara tinha 3 pequenos guris e era viúva. Hasin, seu esposo, fora morto por um escorpião israelense, assim acumulara as funções de mãe, pai e militante política. Jacob continuava a correr rumo à casa do seu guru. Chegou nos 15 minutos finais do seu último desaniversário daquele ano. O guru Rama o esperava. Zara pensava em Hasin, no seu belo rabo, nos seus cabelos de fogo e no pequeno escorpião que sem derramar mais do que uma gota de sangue matou Hasin com requintes de crueldade e agonia. Pensava em quantos escorpiões Hasin já havia explodido, mas eram apenas escorpiões, animais sujos da areia e do pó. Não era certo uma raposa, mãe de família, julgar seu marido por ter explodido apenas algumas centenas de escorpiões israelenses. Pensava enquanto andava. Jacob estava indignado. Seu guru Rama, como de praxe, a cada último desaniversário do ciclo lhe revelava parte do seu passado. Ora, ora! Nunca tinha notado que Jacob não era um nome hindu. Como nunca notara? Era mais do que óbvio, mas judeu? Como trocar o lindo coelhofante azul Indra, e o coelhão de 6 braços shiva por um velho abutre barbudo chamado javé, iavé, Jeová... não sabia bem pronunciar o nome do velho abutre, recém apresentado e que agora deveria receber oferendas e louvor, ao invés do coelhofante azul. Mas como ainda no fundo de sua alma coelhica acreditava em reencarnação (tinha que pensar baixo, pois nas leis do velho abutre Iavé, reencarnação era uma blasfêmia, pois para eles, e para Jacob agora obrigado por Rama, que fique claro! teria que ser judeu por um ciclo desaniversárico)... bem como ainda acreditava em reencarnação, e Rama nunca dava informações para mais de um ano, logo pensou que isto só poderia ter sido em outra vida. Teria que esperar então, mais 364 desaniversários para seu guru lhe revelar algo mais. Zara pensava nas outras esposas de Hasin. Por onde andariam desde a morte do marido? O harém tinha se desfeito, e de qualquer forma, Zara nunca reconheceu as outras como esposas, e por baixo de suas raposoburcas seria impossível reconhecer seus focinhos. Que importava? Ela sempre tinha sido a raposa número um, as outras eram as outras, como diria a famosa expressão raposopopular, e ela - Zara - que tinha carregado em seu ventre as pequenas raposas, não as outras ! Jacob como coelho, e ex-coelho hindu, não comia carne, nem minhocas, nem larvas, nem nada animal. Só alface e cenoura mesmo (eram seus pratos favoritos) mas qualquer verdura lhe apetecia o paladar. Mas a peregrinação tinha-o fatigado. Estava prestes a cair, falecer, e de que adiantaria abstenção de carne perante a morte? Nem para reencarnação serviria, pois teria que esperar por mais 364 desaniversários para a próxima revelação do guru Rama. Esperar, esperar... que raio de nome Jacob é esse? E como poderia ser hebreu, israelense e judeu? Esperar, esperar... A fome o remoía. De repente viu 3 pequenas raposinhas. Não agüentou. Saltou sobre elas e com seus incisivos cortantes (devido ao aparelho ortodôntico) , cortou suas jugulares, e as comeu. Pensou : foda-se. Já fui hebreu, logo acho que comia carne, menos animais impuros, mas...hummmmm...que gostoso! Zara caminhava pelos verdes prados de um oásis cheio de água doce (estava a encher seu cantil para hidratar seus pequenos filhotes) quando se lembrou do seu outro lado. Não o lado mãe, mas o lado pai, substituto de Hasin. O lado militante político. Repentinamente veio à memória sua mochila. Oh tinha esquecido junto aos seus filhotes. Jacob estava com sede. Não estava acostumado a tal cardápio salgado e sangrento, em outras palavras, carnívoro. Ao olhar ao redor das 3 carcaças devoradas viu uma pequena mala. Pensou: deve haver algo que possa matar a minha sede. Mas ao abri-la liberou-se o fogo-fátuo. Todas as preocupações de Zara agora eram obsoletas. Zara era uma raposa paquistanesa bomba, indo de encontro à toca dos coelhos hindus. Não chegou a completar sua missão. A mala explodiu!
Quinta-feira, 20 de janeiro de 2005
A loucura controlada
Há sabedoria na loucura controlada, sussurrava Mi-Tshe-Ring.
Era um daqueles dias de lascar. O sol fervia as nuvens e o céu chorava pelo intenso calor que o feria. Os últimos meses foram terríveis para o mundo. Calor, muito calor, sussurrava Mi-Tshe-Ring. Calor, muito calor...
Meses a fio sem chuva, a temperatura beirava os quarenta e oito graus Celsius em Barcelona. Uma epidemia misteriosa havia se alastrado. Ainda não havia mortos, ou melhor, ainda não havia corpos espalhados pela Europa. Os corpos estavam andando por aí, pelas sombras, escondendo-se do Sol, mas não agiam mais como dantes.
Via-se de tudo nas ruas. Bufões andavam e corriam tropeçando em seus próprios pés, ou em algum outro par desavisado que passassem próximos aos deles. Derrubavam toalhas úmidas dos varais (as pessoas agora tinham este hábito. Em todo lugar encontravam-se panos úmidos pendurados), e as colocavam em suas cinturas de bufões. Tiravam suas calças e roupas íntimas, por sob a toalha, e mostravam seus órgãos sexuais em meio a gargalhadas grotescas. Às vezes apenas sentavam-se em algum banco de praça e falavam e riam com algum amigo imaginário.
Via-se também seres andróginos aos montes. Mi-Tshe-Ring observava e queixava-se do calor, da sacada de seu apartamento, em meio a toalhas úmidas e muito calor.
Outro dia de lá viu pessoas aglomeradas para assistir um vizinho ser serrado ao meio. Tinham cometido um erro durante o processo e agora tinham dois jornaleiros de noventa centímetros cada. Na verdade perderam um pedacinho dele. Mi-Tshe-Ring achava que do jornaleiro original de um metro e oitenta e dois centímetros, tinha sobrado talvez um metro e setenta e cinco.
Varreram as rebarbas do corpo bi-partido em meio ao sangue que vazava da caixa recém aberta. Mas lá iam eles, em meio a gritos histéricos, serrar outro vizinho, para tentar reproduzir o espetáculo de gerações passadas, realizado sob tendas de lona. Imaginava Mi-Tshe-Ring, hoje, sob uma lona, em meio a tal calor, qualquer criança ferveria...
Quantas máscaras pela rua. Todos usavam alguma. Mi-Tshe-Ring não entendia o planeta. Sua namorada dizia que dos quarenta e poucos músculos acionados no ato de sorrir, na face, (quando se mostra os dentes), não tinha visto nem seis. Mi-Tshe-Ring era louco. Era completamente fora dos padrões do mundo atual, por isso mantinha-se só a completar os trabalhos finais dos I.As. que estavam aprendendo a tocar trompa. Eram um quarteto de trompas. Tocavam razoavelmente bem escalas melódicas e harmonias complexas, mas a paixão dos antigos homens não se encontrava neles. Mi-Tshe-Ring depois de sete anos de pesquisa não entendia porque não conseguiam tocar como ouvia em gravações passadas. A essa altura já deveriam estar interpretando fragmentos de Stravinsky, mas soava apenas um dó ré dó ré interminável, com harmônicos que lembravam o som de um videogame do século XX, algo como o som do acelerar dos carros do Enduro-Atari.
Sua namorada ainda pretendia um dia ver os tais músculos da face a contrair e relaxar durante o tão aguardado riso de Mi-Tshe-Ring, que nunca vinha.
Como Violeta fora feita à imagem e semelhança do seu criador, não conseguia sorrir também. Era tal qual Mi-Tshe-Ring. Não entendia piadas, não assoviava, não cantarolava no chuveiro holográfico, nem enquanto comia. (tanto o chuveiro, quanto às refeições eram holográficas, Foram aclopadas ao programa inicial dos I.As. com intuito de reproduzir as funções básicas do prazer. Comer e banhar-se).
O mundo parecia um grande circo. As Sete Faces do Doutor Lao não descreveria tal espetáculo tão bem quanto o que se via em qualquer banco das muitas praças de Barcelona.
Ao olhar de sua sacada para a Sagrada Família, ainda inacabada depois de quase um século, pensou : talvez hoje Gaudi seria um ser normal, tal como eu, perante tal desvairada manada de seres humano-oníricos. Se houvesse mais homens como ele, ou como eu, em suma normais, resolver-se-ia o problema da construção. Talvez até Gáudio não tivesse morrido atropelado, pois para que olhar para a loucura arquitetônica acima de sua cabeça, se havia tanta no solo entre as pessoas...teria visto o carro a se aproximar dele...não teria sido atropelado.
Ao acessar o banco de dados dos costumes culturais do Século XX, se deparou com dados de religiões ocidentais diversas. Via que as religiões eram como um grande circo. Digo, o Rito, não o Mito, que fique claro, pensava ele. Pastores, padres, cléricos aglomeravam pessoas perante seus púlpitos e as instigavam a acreditar no impossível, no improvável. Em vez de serrar pessoas ao meio, juravam poder concertá-las, em nome de algum nome mitológico (cada uma tinha um a que recorrer). Todas aquelas pessoas com máscaras o incomodavam. Não entendia o porque deste costume atual de andar por aí com outro rosto, colocado sobre o original orgânico.
Mas se ninguém mais agia como ser individual, para que a individualidade genética? Para que tamanha singularidade em rostos diferentes, etnias, culturas. Havia apenas os grupos. Os grandes grupos.
Clãs de Bufões, clãs dos oníricos-homens, dos palhaços, dos andróginos. (As mulheres não se depilavam mais, e as que possuíam pelos faciais devido a alguma disfunção genética, tinham agora o péssimo hábito de cultivá-los, e até realçá-los com lápis e Rímel. Os homens não cortavam mais seus cabelos, nem suas unhas também, e andavam maquiados exageradamente).
Lá do alto do seu apartamento, viu um homem com uma máscara de Cristo, outro com uma de Gandhi, e jurava até ter visto um Pablo Picasso! Percebeu que mesmo quando os homens ainda eram semilunáticos, até meados do início do Século XXI as máscaras já existiam. Grandes grupos de homens e mulheres vestiam suas máscaras imaginárias e perseguiam ideais mais imaginários ainda. Alguns, como Picasso até as tinham estudado profundamente, para retratar melhor a complexidade da loucura humana.
Resolveu voltar ao interior de seu lar e tentar alguns novos progressos nos I.As trompistas. No meio do movimento de virar o corpo e voltar ao interior de sua casa, viu inda anões a saltitar e beliscar todos que passavam na rua. Pior! Davam cambalhotas!
Achava que não havia mais deles no mundo... eles dão cambalhotas... que irritante!
Violeta observava as reações do seu namorado e criador. Para ela, Mi-Tshe-Ring era um deus. Não só havia criado Violeta, mas a criou a sua imagem e semelhança. Mesmo assim Violeta não entendia porque só Mi-Tshe-Ring era sério, completamente fora dos padrões de normalidade. Nunca permitiu qualquer tentativa dos seus vizinhos a serrá-lo ao meio, nunca dava aquelas risadas de hiena dos bufões, seus cabelos eram curtos, e suas unhas bem aparadas...fora o fato que mais a perturbava. Ele nunca mostrava os dentes. Apenas sorria de maneira branda, quando resolvia um problema muito intrincado.
De repente assoviou. Mi-Thse-Ring, de princípio não reparou. Achava que era algum trapezista tentando escalar o seu prédio a assoviar, na tentativa de ser notado.
Aquela música não saia de sua cabeça. Que inferno!
Resolveu ir ver quem era o “mentecapto assobiador” que tanto o importunava. Ao se defrontar com o que viu parou. Violeta assoviava. Mas como ? Não tinha ensinado, nem programado tal função. Aliás ele, o criador de Violeta, não sabia assoviar desde a mais tenra idade. Nunca soube.
Voltou o pensamento para os seus I.As. trompistas. Notou que nunca haviam conseguido tal feito. Seus lábios sintéticos conseguiam a adaptação de embocadura para tocar três oitavas das quatro da tessitura de suas trompas. Mas nunca assoviaram, nem mesmo quando tinham a inteligência musical de uma criança.
Neste momento percebeu, abriu os olhos da mente. O que falta nos I.As. é a loucura controlada. O homem nunca foi normal. Sempre foi louco, ousado, criativo. Sua loucura era controlada...sua loucura era controlada ! repetia. De lá saíram artistas, escritores, músicos, matemáticos, atletas, atores...todo o conhecimento humano é fruto da loucura controlada.
Voltou ao seu computador a fim de estudar um pouco mais os costumes de antes. Viu que os homens, os líderes, perceberam que o poder sempre se concentrava nas mãos dos que conseguiam um modo de manipular a loucura alheia, controlando-a. Sem a loucura o homem ficaria louco? OH! Que belo paradoxo. Será que foi isso o que ocorreu à humanidade? Tentaram retirar a loucura do mundo e o mundo pirou de vez?
Estendeu alguns panos úmidos ao redor de sua cadeira de trabalho e pensava... pensava... pensava, em meio ao calor. Depois de alguns instantes apenas repetia, mas que calor, que maldito calor! Que calor ...
Fez uma pausa e retirou sua máscara de palhaço. Mi-Tshe-Ring, o Bobo-Sábio de Mani-Rindu do budismo tibetano havia cumprido o seu papel naquele dia. Todas as crianças tibetanas presentes no local estavam sentadas ao redor dele a ouvir sua história. Toda a população adulta tinha sido instruída perante a loucura e a alegria. Agora poderiam voltar ao trabalho, à sua rotina. O conto alegórico por ele contado serviu de ensinamento para todos. O homem nunca precisará de ninguém para estipular os limites. A loucura controlada desempenha este papel.
Assim se cumpriu mais um dia da vida de Mao-Lee, o palhaço Mi-Tshe-Ring, de Mani-Rindu.
Ao ver que todos tinham ido embora, colocou sua máscara de Mi-Tshe-Ring de volta no santuário, e vestiu a de Demiurgo Babuíno brincalhão, e saiu pulando dando cambalhotas por sob a neve do Tibet.
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